Mostrando postagens com marcador Prosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Prosa. Mostrar todas as postagens

O hobby e o objeto da coisa



Imagem ilustrativa: https://unsplash.com/


Algumas pessoas tem o habito de ter um “hobby”. Alguma atividade no tempo de folga que seja feito somente por prazer pessoal. O de alguns é guardar palavras antigas, principalmente, os palavrões.

Acho todos muito engraçados, além do mais, usado hoje em dia não tem sentido pejorativo nenhum, a grande maioria das pessoas não identificam o palavrão como um insulto grave, compreendem apenas como sendo uma palavra que se usava antigamente, quando muito.

Como exemplo temos o palavrão “paspalho”, que significa uma pessoa inútil, tola, indivíduo insignificante. Outro que muito me agrada é o palavrão “ordinário”, mas são tantos. Como “cretino”, “patife”, “calhorda”, “alcoviteiro”, “energúmeno”, “palerma”, “pulha”, “sacripanta” entre tantos outros que estavam à disposição dos nossos ancestrais no desabafar de suas raivas e indignações.

Para alguns indivíduos, no entanto, não são as palavras e as suas atualizações no vocabulário para os nossos dias, mas, a ação em si realizada para dar ânimo e alma a esses palavrões. Aquelas criaturas que estão caminhando pela terra para serem as representações humanas que deram significado a tais palavrões.

Poderia existir uma persona tão desviada e afligida na alma que pudesse reunir em si todas essas deturpações da moral humana?

Ah... Se há! Há tantos quantos existem as mazelas do mundo. Esses cretinos, patifes, calhordas, alcoviteiros, energúmenos, palermas, pulhas, sacripantas... todos eles ou ele só, os mentirosos, dão impressão de maioria porque são os mais barulhentos.


..........................................................................................
🐆 Rio das Onças 🐆
..............................................................................................

A passagem de Zé Martelo



 


A luminosidade fria da lua serpenteava pelas frestas da área de vento da pequena casa em ruínas no sertão do Jaguaribe. Naquele quarto de poucas posses, ele nunca tinha sentido tão clara a percepção dos diversos sons  vindos das incontáveis variedades de espécies que só sai à noite. 

O Segredo do Lobo

 

Foto: Miro Maia - Pôr do sol entre as carnaúbas, Russas - CE.

 As ruas já estavam todas vazias, somente o vigia da noite perambulava com seu apito sonolento. Aquela era uma cidade feliz, seus habitantes dormiam tranquilamente. Sem o medo dos tempos em que vivemos. Por outro lado, a característica de indignar-se e agir contra atitudes que ofendem a lei de Deus e dos homens permanecia letárgica.

João Batista, conhecido por todos na Vila como Bastião, gostava dessas noites largadas para se dedicar à contemplação das velhas casas que compõem o centro de São Bernardo das Russas. Andava em suas ruas, sentia o aroma múltiplo daquele espaço e depois, deixava-se embalar pelo vento solto e desimpedido do largo da Matriz.

Já testemunhou alguns movimentos estranhos em suas rondas noturnas, situações e acontecimentos sem explicações. Uma vez ouviu vozes que negociavam alguma mercadoria no beco do Mercado Velho, mas ao entrar no bequinho, não avistou um ser vivente. Ficou se arrepiando toda vez que lembrava, e depois do episódio sobrenatural não cruzava mais beco à noite.

Certa vez, parou para descansar na calçada da igreja quando ouviu um assovio fino rasgar o vão da madrugada. Achou ainda cedo para que fosse algum leiteiro, não deveria passar de duas da madrugada, quando dobrou a esquina da antiga cadeia avistou um dos capangas do prefeito Balbino Teixeira. O homem voltou imediatamente quando avistou o jovem fiscal de quarteirão, alguns minutos depois, reapareceu trazendo consigo um dos filhos de Balbino.

─ Ouvi dizer que roubaram umas galinhas da chácara do Dr. Manoel Domingues. É bom que vá pra lá e veja se descobre quem foi! ─ Disse o rapaz cheio de arrogância.

Bastião ouvindo aquela ordem, começou a imaginar porque o filho do prefeito haveria de ter interesse nas galinhas do Dr. Domingues?! Não eram tão amigos para o prefeito mandar uma ronda pessoal. Pareceu-lhe então que era uma invenção mal bolada para afastá-lo daquele local.

Não fez questão, imediatamente montou em sua besta e saiu pela Rua da Frente na direção da igreja de São Sebastião. Entretanto, ao fazer a volta pela pracinha retornou pela Rua do Mercado, indo até a casa de Chico Sapateiro, em sua oficina o ponto de visão era privilegiado de todo o movimento do passo municipal.

Observou que do estreito beco da Rua do Nascente saiu um carro de boi com coberta de lona. O capanga estava encostado em uma árvore próxima e o filho do prefeito acompanhava o carro em seu cavalo.

 Encostaram bem em frente a porta que fica do lado de trás da igreja Matriz, abriram as portas da prefeitura, voltaram até o fundo da carroça e de lá começaram a puxar uma grande jaula de ferro dobrado. Bastião estava naquele serviço há seis meses e nunca havia visto este movimento. Os postes a querosene foram apagados e a única luminosidade que se via era a o lampião na frente da junta de boi e duas lamparinas de mão.

─ Vez ou outra isso acontece. ─ Disse Chico Sapateiro ─ Tem época de lua crescente em fevereiro, que ele vira lobisome. Diz que é pro mode a lua nascer no dia que era pra ser 30, como não existe esse dia em fevereiro ele fica invertido e vira sem ser lua cheia 30.

Bastião não entendeu a explicação, mas olhava para o rosto daquele velho sapateiro, esperando uma confirmação do que acabara de ouvir. Nunca soube deste caso, nem por comentário, que o fazendeiro Balbino Teixeira era um lobisomem.

─ Tem certeza? Você já viu ele encantado?

─ Uma vez eu vi, quer dizer, ouvi! Eles são bem cuidadoso, outra vez, chegaro perto das três horas, quase não fizero zoada. Mas o bicho num tava tranqüilo e urrou que parecia uma mistura de garrote com onça acuada. Pra desencantar eles faz uma mistura de água benta, raiz da carnaúba, mel de jandaíra e capim-santo, o bicho amolece e eles arrastam pra dentro da gaiola. Na hora que vão sair eles apagam os candeeiros pra mode ninguém aguçar bem a visage.

O jovem Chefe de Quarteirão escutou um movimento e assim como disse o velho artesão do couro, o carroceiro aprumou os fundos da carroça para a porta da prefeitura. Depois apagou as luzes mais próximas, amarrou os bois e ficou segurando nas rédias para acalmar a junta.

A visão que se tinha era apenas a do lampião da frente da carroça.  Uma luminosidade amarelada que demarcava seu espaço entre a frente da lona da carroceria e um meio círculo que iluminava os animais. O resto era breu. A escuridão daquela noite transformava as estrelas nas coisas mais fáceis de ver em toda imensidão, depois vinha a luz amarelada daquele carro.

O ranger do ferro na carroceria de madeira denunciava que a carga já está sendo posta. Nada mais se vê a não ser, o preocupado carroceiro que insiste em acalmar os animais naquele momento.

[Chico Sapateiro interrompeu o instante para informar que, ao contrário do que dizem, não é apenas com a prata que se mata um lobisomem. Também podemos usar uma socadeira municiada com osso de defunto pilado, misturado com sal e água-benta].

Esse preparo, dizia ele, faz um efeito ainda mais danoso ao lobisomem, pois mata lentamente ou deixa o portador da maldição ferido com a pele marcada, delatando a sua identidade.

Finalmente o carro-de-boi inicia a sua marcha e sai. Bastião agradeceu ao amigo como se ele tivesse lhe dado um presente, já se despedindo com pressa. Correu para ocupar o seu posto, mas ao chegar se arrastando pelas sombras da Matriz, notou que o carro-de-boi já havia entrado no beco da velha cadeia, fórum e câmara.

Ficou com medo naquela noite gelada. Foi até a rua do mercado tomar uma cana na banca de tábua do seu Pilão, mas não comentou com ninguém sobre o assunto. Não sabia até que ponto este segredo era conhecido ou não, além do mais, já tinha feito planos para um novo encontro.

Passou-se um ano da data do acontecido e Bastião não tinha visto mais nenhum um novo movimento parecido. Até que no dia primeiro de março, estava se distraindo com uma lasca de cana-de-açúcar, quando a mesma cena se repetiu. Só que desta vez, o capanga de Balbino mandou logo vir a carroça e foi em direção a ele, mas ao contrário da outra vez, não pediu a Bastião que fosse ver algum roubo de galinha.

─ Vem cá rapaz, hoje você vai me ajudar num serviço. O filho do prefeito não pode vir e eu preciso de mais um ─ Disse o capanga.

Bastião sentiu um frio laminoso que percorria a sua espinha do osso do mucumbuco ao pé do cangote. Tentou balbuciar alguma palavra mas não conseguiu. Pensou que os homens estavam sabendo que ele tinha visto o último episódio, nessa cidade as conversas voam com o vento.

No entanto, lhe veio à mente que o único que sabia era Chico Sapateiro, e daquele não tinha medo que falasse nada. Até porque estava morto. Foi encontrado no dia da festa da Padroeira, coitado, emborcado por cima de sua banca de trabalho.

O caso é que acompanhou o capanga e ousou até a fazer um comentário sobre o clima agradável da noite, como quem quer puxar conversa. O capanga respondeu pelo nariz. Bastião via com arrepio o mesmo carro que fizera o transporte da primeira vez, mas como já havia lhe confiado a missão, passou a acreditar que tudo estava sobre controle e que não precisava se preocupar.

Arquitetou no juízo como faria para conseguir, quem sabe, receber algum trocado. Não sabia se deixava que oferecessem ou se inventava algum comentário financeiro. Resolveu dentro de si esperar que o capanga se manifestasse, caso contrário faria um comentário na despedida do serviço sobre a dificuldade da vida.

─ Você fica aqui segurando a junta pra elas num afastar. O carroceiro vai me ajudar a carregar a encomenda.

Imediatamente Bastião agarrou as rédeas do carro e se posicionou na frente dos bois, assim como fazia o carroceiro, passava a mão nos pescoços dos animais dizendo palavras de calma. Pensou que aquele segredo deveria valer muito dinheiro, quanto pagariam pra guardar a cristandade do senhor Balbino Teixeira?

Esperou alguns minutos até que ouviu os ruídos de arrastado da jaula em quatro rodinhas de madeira. Os animais se avexaram na hora em que o peso ganhava conforto na carroceria, ele puxou as rédeas e manteve o carro sob controle.

─ Rapaz eu quero que você me ajude a entregar essa carga, o carroceiro não tá se sentindo bem do tiso. Você vai no carro com o ajudante e depois eu mando lhe deixar. É serviço pro prefeito. ─ Disse o capanga.

Bastião concordou imediatamente e saíram os dois debaixo do piado da junta de boi, sentia no ar que saía de dentro da coberta um cheiro de ferro misturado com imundície. No caminho passaram a conversar sobre assuntos diversos, até que num determinado momento, a conversa ficou pesada e irreal.

­─ Você rapaz tava espiando o nosso movimento do ano? ― disse o capataz.

─ Não, eu nunca vi movimento nenhum. ─ Afirmou Bastião aterrorizado.

─ Eu pensava que fosse só aquele sapateiro velho que soubesse o segredo, cabra conversador de besteira. Agora ele não fala mais, veneno é bom e deu cabo desse problema.

─ O senhor tá enganado, eu não sei de nada de movimento, a minha amizade com o Chico Sapateiro num passava dos remendos que ele fazia na minha bota. ─ disse amarelado.

─ Você se entregou quando foi tomar conta dos bois ― falou decidido o capataz ― o ajudante me disse que você fez os mesmos gestos que o carroceiro faz na hora que acalma a junta de boi. Coisa que só pode acontecer se você tivesse visto ele fazer. Agora é tarde vigia da noite.

Bastião virou-se já com a intenção de pular do carro e ganhar o mato, quando avistou cercando o caminho um plantel de capangas liderados pelo filho de Balbino Teixeira. Ao lado avistou o carroceiro com seu lampião estendido acima da cabeça. Foi ele quem se apressou para fazer a tocaia. Dois cavaleiros desceram e expuseram uma pá e um ferro-de-cova. Neste mesmo momento ouviu uma garrucha engatilhar no seu ouvido.

─ Amarrem ele e fechem a boca, vamos levar pra Lagoa da Onça, lá o barro não vai deixar o corpo dele feder. ─ Disse o filho do prefeito.

O levaram amarrado e próximo da lagoa começaram o serviço de escavação de sua cova. Bastião assistiu a tudo soluçando e se engasgando com a saliva. Quando tiraram a mordaça ele implorou para não morrer, nunca diria nada a ninguém, chamou pela mãe e pediu ajuda ao pai já morto. Depois de um tempo, já mais controlado, olhou o seu executor e lhe perguntou se poderia ao menos, antes de morrer, ter a oportunidade de ver com seus próprios olhos o lobisomem.

─ O lobisomem? ─ Repetiu o filho do prefeito. ─ Ah! Sim o lobisomem. Tem certeza que quer ver? ─ soltando uma gargalhada no ar.

─ Sim! ─ Respondeu resoluto da decisão de sua curiosidade.

Os homens levantaram o jovem vigia e o conduziram para a traseira do carro-de-boi. Parou em frente a abertura da lona, quando o capanga afastou com a mão, Bastião ficou apalermado ao ver, não um lobisomem como havia imaginado e confirmado Chico Sapateiro, mas sim, um pesado cofre abarrotado de dinheiro da Vila.

 Olhou para o capanga procurando uma explicação para aquela situação em que procurou se envolver. O filho do prefeito olhou para ele e disse que já estava pensando em lhe dar somente uma pisa, mas como sua curiosidade não podia ser saciada, acabou descobrindo o segredo, o desfalque do dinheiro público.

Foi naquela mesma noite desterrado. No outro dia um outro vigia noturno estava fazendo os mesmos trajetos.

..........................................................................................
🐆 Rio das Onças 🐆

..............................................................................................