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A passagem de Zé Martelo



 


A luminosidade fria da lua serpenteava pelas frestas da área de vento da pequena casa em ruínas no sertão do Jaguaribe. Naquele quarto de poucas posses, ele nunca tinha sentido tão clara a percepção dos diversos sons  vindos das incontáveis variedades de espécies que só sai à noite. 

O Segredo do Lobo

 

Foto: Miro Maia - Pôr do sol entre as carnaúbas, Russas - CE.

 As ruas já estavam todas vazias, somente o vigia da noite perambulava com seu apito sonolento. Aquela era uma cidade feliz, seus habitantes dormiam tranquilamente. Sem o medo dos tempos em que vivemos. Por outro lado, a característica de indignar-se e agir contra atitudes que ofendem a lei de Deus e dos homens permanecia letárgica.

João Batista, conhecido por todos na Vila como Bastião, gostava dessas noites largadas para se dedicar à contemplação das velhas casas que compõem o centro de São Bernardo das Russas. Andava em suas ruas, sentia o aroma múltiplo daquele espaço e depois, deixava-se embalar pelo vento solto e desimpedido do largo da Matriz.

Já testemunhou alguns movimentos estranhos em suas rondas noturnas, situações e acontecimentos sem explicações. Uma vez ouviu vozes que negociavam alguma mercadoria no beco do Mercado Velho, mas ao entrar no bequinho, não avistou um ser vivente. Ficou se arrepiando toda vez que lembrava, e depois do episódio sobrenatural não cruzava mais beco à noite.

Certa vez, parou para descansar na calçada da igreja quando ouviu um assovio fino rasgar o vão da madrugada. Achou ainda cedo para que fosse algum leiteiro, não deveria passar de duas da madrugada, quando dobrou a esquina da antiga cadeia avistou um dos capangas do prefeito Balbino Teixeira. O homem voltou imediatamente quando avistou o jovem fiscal de quarteirão, alguns minutos depois, reapareceu trazendo consigo um dos filhos de Balbino.

─ Ouvi dizer que roubaram umas galinhas da chácara do Dr. Manoel Domingues. É bom que vá pra lá e veja se descobre quem foi! ─ Disse o rapaz cheio de arrogância.

Bastião ouvindo aquela ordem, começou a imaginar porque o filho do prefeito haveria de ter interesse nas galinhas do Dr. Domingues?! Não eram tão amigos para o prefeito mandar uma ronda pessoal. Pareceu-lhe então que era uma invenção mal bolada para afastá-lo daquele local.

Não fez questão, imediatamente montou em sua besta e saiu pela Rua da Frente na direção da igreja de São Sebastião. Entretanto, ao fazer a volta pela pracinha retornou pela Rua do Mercado, indo até a casa de Chico Sapateiro, em sua oficina o ponto de visão era privilegiado de todo o movimento do passo municipal.

Observou que do estreito beco da Rua do Nascente saiu um carro de boi com coberta de lona. O capanga estava encostado em uma árvore próxima e o filho do prefeito acompanhava o carro em seu cavalo.

 Encostaram bem em frente a porta que fica do lado de trás da igreja Matriz, abriram as portas da prefeitura, voltaram até o fundo da carroça e de lá começaram a puxar uma grande jaula de ferro dobrado. Bastião estava naquele serviço há seis meses e nunca havia visto este movimento. Os postes a querosene foram apagados e a única luminosidade que se via era a o lampião na frente da junta de boi e duas lamparinas de mão.

─ Vez ou outra isso acontece. ─ Disse Chico Sapateiro ─ Tem época de lua crescente em fevereiro, que ele vira lobisome. Diz que é pro mode a lua nascer no dia que era pra ser 30, como não existe esse dia em fevereiro ele fica invertido e vira sem ser lua cheia 30.

Bastião não entendeu a explicação, mas olhava para o rosto daquele velho sapateiro, esperando uma confirmação do que acabara de ouvir. Nunca soube deste caso, nem por comentário, que o fazendeiro Balbino Teixeira era um lobisomem.

─ Tem certeza? Você já viu ele encantado?

─ Uma vez eu vi, quer dizer, ouvi! Eles são bem cuidadoso, outra vez, chegaro perto das três horas, quase não fizero zoada. Mas o bicho num tava tranqüilo e urrou que parecia uma mistura de garrote com onça acuada. Pra desencantar eles faz uma mistura de água benta, raiz da carnaúba, mel de jandaíra e capim-santo, o bicho amolece e eles arrastam pra dentro da gaiola. Na hora que vão sair eles apagam os candeeiros pra mode ninguém aguçar bem a visage.

O jovem Chefe de Quarteirão escutou um movimento e assim como disse o velho artesão do couro, o carroceiro aprumou os fundos da carroça para a porta da prefeitura. Depois apagou as luzes mais próximas, amarrou os bois e ficou segurando nas rédias para acalmar a junta.

A visão que se tinha era apenas a do lampião da frente da carroça.  Uma luminosidade amarelada que demarcava seu espaço entre a frente da lona da carroceria e um meio círculo que iluminava os animais. O resto era breu. A escuridão daquela noite transformava as estrelas nas coisas mais fáceis de ver em toda imensidão, depois vinha a luz amarelada daquele carro.

O ranger do ferro na carroceria de madeira denunciava que a carga já está sendo posta. Nada mais se vê a não ser, o preocupado carroceiro que insiste em acalmar os animais naquele momento.

[Chico Sapateiro interrompeu o instante para informar que, ao contrário do que dizem, não é apenas com a prata que se mata um lobisomem. Também podemos usar uma socadeira municiada com osso de defunto pilado, misturado com sal e água-benta].

Esse preparo, dizia ele, faz um efeito ainda mais danoso ao lobisomem, pois mata lentamente ou deixa o portador da maldição ferido com a pele marcada, delatando a sua identidade.

Finalmente o carro-de-boi inicia a sua marcha e sai. Bastião agradeceu ao amigo como se ele tivesse lhe dado um presente, já se despedindo com pressa. Correu para ocupar o seu posto, mas ao chegar se arrastando pelas sombras da Matriz, notou que o carro-de-boi já havia entrado no beco da velha cadeia, fórum e câmara.

Ficou com medo naquela noite gelada. Foi até a rua do mercado tomar uma cana na banca de tábua do seu Pilão, mas não comentou com ninguém sobre o assunto. Não sabia até que ponto este segredo era conhecido ou não, além do mais, já tinha feito planos para um novo encontro.

Passou-se um ano da data do acontecido e Bastião não tinha visto mais nenhum um novo movimento parecido. Até que no dia primeiro de março, estava se distraindo com uma lasca de cana-de-açúcar, quando a mesma cena se repetiu. Só que desta vez, o capanga de Balbino mandou logo vir a carroça e foi em direção a ele, mas ao contrário da outra vez, não pediu a Bastião que fosse ver algum roubo de galinha.

─ Vem cá rapaz, hoje você vai me ajudar num serviço. O filho do prefeito não pode vir e eu preciso de mais um ─ Disse o capanga.

Bastião sentiu um frio laminoso que percorria a sua espinha do osso do mucumbuco ao pé do cangote. Tentou balbuciar alguma palavra mas não conseguiu. Pensou que os homens estavam sabendo que ele tinha visto o último episódio, nessa cidade as conversas voam com o vento.

No entanto, lhe veio à mente que o único que sabia era Chico Sapateiro, e daquele não tinha medo que falasse nada. Até porque estava morto. Foi encontrado no dia da festa da Padroeira, coitado, emborcado por cima de sua banca de trabalho.

O caso é que acompanhou o capanga e ousou até a fazer um comentário sobre o clima agradável da noite, como quem quer puxar conversa. O capanga respondeu pelo nariz. Bastião via com arrepio o mesmo carro que fizera o transporte da primeira vez, mas como já havia lhe confiado a missão, passou a acreditar que tudo estava sobre controle e que não precisava se preocupar.

Arquitetou no juízo como faria para conseguir, quem sabe, receber algum trocado. Não sabia se deixava que oferecessem ou se inventava algum comentário financeiro. Resolveu dentro de si esperar que o capanga se manifestasse, caso contrário faria um comentário na despedida do serviço sobre a dificuldade da vida.

─ Você fica aqui segurando a junta pra elas num afastar. O carroceiro vai me ajudar a carregar a encomenda.

Imediatamente Bastião agarrou as rédeas do carro e se posicionou na frente dos bois, assim como fazia o carroceiro, passava a mão nos pescoços dos animais dizendo palavras de calma. Pensou que aquele segredo deveria valer muito dinheiro, quanto pagariam pra guardar a cristandade do senhor Balbino Teixeira?

Esperou alguns minutos até que ouviu os ruídos de arrastado da jaula em quatro rodinhas de madeira. Os animais se avexaram na hora em que o peso ganhava conforto na carroceria, ele puxou as rédeas e manteve o carro sob controle.

─ Rapaz eu quero que você me ajude a entregar essa carga, o carroceiro não tá se sentindo bem do tiso. Você vai no carro com o ajudante e depois eu mando lhe deixar. É serviço pro prefeito. ─ Disse o capanga.

Bastião concordou imediatamente e saíram os dois debaixo do piado da junta de boi, sentia no ar que saía de dentro da coberta um cheiro de ferro misturado com imundície. No caminho passaram a conversar sobre assuntos diversos, até que num determinado momento, a conversa ficou pesada e irreal.

­─ Você rapaz tava espiando o nosso movimento do ano? ― disse o capataz.

─ Não, eu nunca vi movimento nenhum. ─ Afirmou Bastião aterrorizado.

─ Eu pensava que fosse só aquele sapateiro velho que soubesse o segredo, cabra conversador de besteira. Agora ele não fala mais, veneno é bom e deu cabo desse problema.

─ O senhor tá enganado, eu não sei de nada de movimento, a minha amizade com o Chico Sapateiro num passava dos remendos que ele fazia na minha bota. ─ disse amarelado.

─ Você se entregou quando foi tomar conta dos bois ― falou decidido o capataz ― o ajudante me disse que você fez os mesmos gestos que o carroceiro faz na hora que acalma a junta de boi. Coisa que só pode acontecer se você tivesse visto ele fazer. Agora é tarde vigia da noite.

Bastião virou-se já com a intenção de pular do carro e ganhar o mato, quando avistou cercando o caminho um plantel de capangas liderados pelo filho de Balbino Teixeira. Ao lado avistou o carroceiro com seu lampião estendido acima da cabeça. Foi ele quem se apressou para fazer a tocaia. Dois cavaleiros desceram e expuseram uma pá e um ferro-de-cova. Neste mesmo momento ouviu uma garrucha engatilhar no seu ouvido.

─ Amarrem ele e fechem a boca, vamos levar pra Lagoa da Onça, lá o barro não vai deixar o corpo dele feder. ─ Disse o filho do prefeito.

O levaram amarrado e próximo da lagoa começaram o serviço de escavação de sua cova. Bastião assistiu a tudo soluçando e se engasgando com a saliva. Quando tiraram a mordaça ele implorou para não morrer, nunca diria nada a ninguém, chamou pela mãe e pediu ajuda ao pai já morto. Depois de um tempo, já mais controlado, olhou o seu executor e lhe perguntou se poderia ao menos, antes de morrer, ter a oportunidade de ver com seus próprios olhos o lobisomem.

─ O lobisomem? ─ Repetiu o filho do prefeito. ─ Ah! Sim o lobisomem. Tem certeza que quer ver? ─ soltando uma gargalhada no ar.

─ Sim! ─ Respondeu resoluto da decisão de sua curiosidade.

Os homens levantaram o jovem vigia e o conduziram para a traseira do carro-de-boi. Parou em frente a abertura da lona, quando o capanga afastou com a mão, Bastião ficou apalermado ao ver, não um lobisomem como havia imaginado e confirmado Chico Sapateiro, mas sim, um pesado cofre abarrotado de dinheiro da Vila.

 Olhou para o capanga procurando uma explicação para aquela situação em que procurou se envolver. O filho do prefeito olhou para ele e disse que já estava pensando em lhe dar somente uma pisa, mas como sua curiosidade não podia ser saciada, acabou descobrindo o segredo, o desfalque do dinheiro público.

Foi naquela mesma noite desterrado. No outro dia um outro vigia noturno estava fazendo os mesmos trajetos.

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🐆 Rio das Onças 🐆

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O sono zimbro da fome

 


Agora os comboios demoram mais a passar. Não há tantas mercadorias para se transportar, a não ser seres humanos ressecados pela exploração serviçal e pelo desleixo do Estado. Ambrósio era cego de criança, andava pelas estradas e povoados tocando o seu pandeiro, mostrando os seus improvisos certeiros. No ofício de embolador a intimidade com as palavras deve ser tal, que os versos se montam como se já estivessem prontos e naturalizados.

Caminhava com o pandeiro no bornal, uma bengala e um órfão que lhe conduzia auxiliando nas entradas de feiras e nos mercados. O garoto se agarrava e conduzia aquele homem como quem agarra no cabo da enxada ou contorna com uma marreta o ferro amolecido pelo fogo. É trabalho de mundo. Mesmo assim, o sentia como a única família, além de gostar da vida de viajante, livre como os bichos. Como diz o ditado “Cobra que não anda, não come caçote”, então estava sempre correndo atrás de um prato de comida e um local para armar a rede.

Ambrósio pensava sobre esse meio de vida, enquanto o menino procurava uma sombra de árvore onde pudessem escapar das agruras do calor. Na sombra de uma grande oiticica, espalhou sua esteira e recostado naquele oásis, bebeu uma caneca de zinebra e descansou...

O velho ouviu ao longe um piado de rodas de madeira. Voltou-se para o menino e esperou uma fala sobre o que se aproximava, mas o menino nada falou. Então lhe perguntou que carro era aquele que se aproximava. O menino nada via, e resmungou para Ambrósio dizendo que não se via uma alma humana naquele batido de terra, nem construção feita por gente naquele baixio.

Mas na cabeça do cego o som chegava tão claro que era impossível de não acreditar. Desconfiado voltou a perguntar pelo que se aproximava. O menino, aprendido de modos pelo mundo, reverberou para o cego lhe dizendo que com o passar dos anos, o velho além de cego estava ficando doido. Ambrósio não esperou o final da frase e já estava mastigando com a mão sua bengala de cumarú. Deu no rumo da voz do menino e sentiu quando a cipoada estralou no corpo do atrevido e mal educado acompanhante. Complementou com palavras de reprovação e moral, que deixaram o menino soluçando muito mais do que a peia.

Só parou o sermão porque ouviu uma carroça parar bruscamente e uma voz chamar seu nome. Voltou-se para a rodagem apontando o ouvido como se procurasse o lado de onde vinha o som. Perguntou quem era e como sabia seu nome. A mesma voz sisuda voltou aos seus ouvidos, mas desta vez já afirmando a insensatez do destino.

─ Você está velho. Não tem mais idade para ouvir atrevimentos de um moleque. Até quando vai viver nas estradas, esperando pela caridade dos bêbados?

Ao ouvir aquilo ficou extasiado. Não teve mais coragem de fazer nenhuma pergunta, nem mesmo responder a que tinha acabado de ouvir. Então a voz voltou a lhe penetrar os ouvidos.

─ Eu vim para te oferecer o dom da verdade. Depois de apertar minha mão, você terá consciência de tudo que existe e se relaciona. Terá em sua mente todas as visões do mundo e do seu desenvolvimento humano e geológico. Não haverá ser humano capaz de contradizer os seus argumentos, pois a tua voz falará para todos com a mesma clareza da água pura.

O velho coquista emocionado diante da sonoridade das palavras que ouvia, esticou a mão diante da embriaguez da vaidade, não pensou em nenhum instante na profundidade do pacto que já estava próximo de selar. No mesmo instante em que apertou a mão magra, porém vigorosa e firme, seu corpo entrou em estado de choque. Sentiu cada molécula de seu organismo tremer, enquanto sua cabeça latejava no ritmo dos segundos. Sentou-se escorregando pela bengala até o chão.

­─ Você não precisa de um menino mal criado ― Disse a voz sombria ― Sua companhia deve ser um cachorro pé-duro. Este, até depois da tua morte velará teu túmulo.

Não ouviu mais nenhum som. Nem mesmo o carro indo embora, tudo ficou em silêncio profundo diante da pressão daquele sol de setembro. Começou a pensar sobre as últimas palavras do misterioso viajante, não conseguiu se lembrar de tudo e como estava no chão, imaginou ter desmaiado e tudo aquilo não passava de um delírio. Chamou o menino pelo apelido e a resposta que teve foi um latido.

Gritou várias vezes e a voz familiar do menino não lhe chegava. Nesse acesso se arrastou pela rodagem, caiu numa rampa da beira da estrada e resmungou o sumiço do guia. Durante todo esse tempo o cachorro lhe seguiu e sempre latia como se afirmasse a sua presença.

Imaginou que o estranho poderia ter levado o menino consigo. Mas depois, lembrou-se que a partir do momento da chegada da carroça, não havia mais ouvido o acompanhante. Será que fugiu sozinho, depois das lapadas de bengala? O velho começou a sentir o sol esfriar, era o fim da tarde. Onde começa a algazarra de sons e ventos acalentadores. Então, sem o menino, tateou no grande pé de oiticica algum lugar onde pudesse armar a rede. Vez ou outra sentia o enconstado do cachorro em sua perna, e ele espantava com gritos de aboio.

O tempo já estava bem mais frio, enrolou-se na rede e ficou ouvindo os murmúrios do cachorro embaixo dela. De tanto ouvir aquele som, começou a perceber que havia um sistema fonético complexo, mas começava a compreendê-lo e a decifrá-lo. Sentou-se imediatamente na beira da rede quando ouviu o cachorro se lamentando da sorte, não queria acreditar no que estava acontecendo, certamente estava ficando louco.

─ Desculpe por ter sido bruto com o senhor, mas eu estou cansado dessa vida cheia de chegadas e partidas. ─ Finalizou o som que vinha debaixo da rede.

Ambrósio ficou estarrecido, passou a mão embaixo da rede procurando a cabeça do cachorro para lhe fazer um carinho. O bicho ao sentir o toque esparramou-se no chão como se aquele gesto fosse esperado há muito tempo. O velho começou a ouvir os infinitos sons da mata, e pode compreender todas as espécies de aves, insetos e mamíferos. Não estranhou mais, procurou seu pandeiro que logo passou a ritmar sua embolada. Passou a compor versos de tanta beleza, falando sobre a vontade dos bichos, sobre a natureza e ação holística dos ventos e das águas. Ao finalizar as seis estrofes que cantou, percebeu que os sons da noite tinham silenciados. Logo, com o seu silêncio, os ruídos começaram a pontilhar novamente a escuridão.

Pensou que agora ganharia rios de dinheiro, pela manhã chegaria na cidade cantando suas emboladas e seria conhecido e respeitado em todo o Nordeste. Pelo gozo do pensamento, dormiu tranquilamente. Acordou com seu cachorro esfregando o espinhaço no fundo da rede. A passarada indicava que os primeiros raios de sol estavam se apresentando, logo o dia esquentaria. Juntou seus panos e utensílios e rumou para a feira do Mercado Velho. O cachorro, vez ou outra, batia em sua perna e resmungava algum aviso de batente ou buraco, que ele prontamente obedecia.

Desenrolou a esteira de palha de carnaúba e arrastou seu pandeiro. A voz altiva começou a pronunciar a vida dos moradores do lugar e seus maiores problemas. Revelou intrigas, abusos e todas as questões políticas locais, acusando e dando nome aos autores das histórias. Não prestou nem atenção no som do cobre no coité, apenas ia seguindo a sua inspiração. Sem se equivocar, começou a falar da exploração do povo através dos seus patrões, dos adultérios, dos homicídios, de todas as injustiças sociais que sua consciência achava pertinente versar.

Só parou quando ouviu uma voz de prisão. Mas por quê? Injuriados alguns protestavam contra a glosa daquele velho. Foi então que percebeu que não conseguia mais formular versos para agradar, sua natureza respondia imediatamente aos pedidos da verdade que lhe dava condição de construir versos tão sublimes e puros. Denunciar as atrocidades sociais seria o seu caminho e não podia mudar seu destino.

─ Qual o motivo da minha prisão? ─ Perguntou Ambrósio ao seu algoz.

─ Calúnia e difamação das autoridades da cidade.

Ambrósio gritou para o povo presente, que somente iria preso caso o delegado provasse que ele estava mentindo. Apontou o céu pronunciando verdades que todos sabiam, no entanto achavam melhor esconder. Citou os grandes pensadores da História e os maiores profetas. Lama e mentiras foram descobertas, as palavras eram tão significativas que nem os mais lesados deixavam de compreendê-las. Logo a massa começou a tomar partido e não permitiram que a polícia o levasse para pagar por um crime que não cometeu.

A cuia de coité nunca esteve tão cheia. Dava até para pagar um quarto e fazer uma ceia respeitada. Neste êxtase de vitória lembrou-se do moleque desaparecido. O cachorro latiu ao seu pé, o cego sentiu a felicidade do bicho pelas espanadas de cauda que sua perna conduzia. Mandou pedir pelanca e goela cozida para o seu cachorro, para si, pediu um prato de pão-de-milho com carne seca. Ambrósio prestava atenção nos sons de queixo estralando os pequenos ossos vindos do lado do cachorro, e em sua mente conseguia delinear o perfil de seu novo companheiro de viagem. Resolveu chamá-lo com o apelido do menino desaparecido, só para manter a lembrança.

Armou os punhos de sua rede e põe-se a balançar com o auxílio da parede. Dormiu naquele aconchego raro, caindo profundamente no sono, obedecendo a diminuição do ritmo da rede até parar de balançar. De repente, sentiu uma mão miúda balançando o seu ombro. Chamava por ele incessantemente, e sua voz repetia sempre a mesma frase: “Acorda o carro já vai sair.”. Ao decifrar a frase pulou de sobressalto sobre si, perguntou o que estava acontecendo. O menino então respondeu:

─ Acorda véi, isso é que dá inventar de beber zinebra de bucho vazí! Já é fim de tarde e o caminhão tá esperando pra seguir viagem pro Mercado Velho.

E o cego acordou.


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🐆 Rio das Onças 🐆

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Fartura Jaguaribana




As cacimbas que se enfileiravam no leito seco do Araibu, serviam, além de fornecer água, também para marcar o avanço das águas nos anos de invernada. Quando havia notícia de que as águas do Jaguaribe estavam dando de beber ao riacho das Russas, as irradiadoras do cinema alarmavam no prédio da Sociedade Beneficente.

Emitiam em boletins informativos, quais as cacimbas que as águas já haviam engolido. O interessante, é que nas informações veiculadas não se dizia o nome do proprietário da terra próxima a cacimba, mas o nome das lavadeiras de roupa que utilizavam as águas daquelas cacimbas para este duro trabalho.

Ao primeiro alarme de que as águas estavam chegando, imediatamente grande número de pessoas se encaminhavam para o Sítio Canto com o intuito de acompanharem, juntamente com a Banda de Música, a trajetória incessante das águas do Jaguaribe.

Ao se aproximar da sede do município o foguetório anunciava a chegada das águas para toda a população. Por um lado, deslocava o trabalho das lavadeiras, por outro, irrigava todas as terras nas margens do Araibu. A resposta era uma grande explosão de fartura de frutas, legumes, cereais e criações de corte.

O mercado velho servia como pretexto para que as barracas se espalhassem em sua volta e ao longo da Rua do Comércio. Todas recheadas de produtos, utensílios e comidas da região jaguaribana.

As festas da igreja eram realizadas na Rua da Frente e nesse espaço. A noite que dava mais frescor aos populares e acolhia melhor as apresentações musicais e as diversas brincadeiras, entre elas, o piado do carrossel de madeira do Antônio da Marta embalada pela mão humana e ao som de um trio de músicos que ficavam no centro do carrossel.

Os cheiros inundavam o espaço. As lavadeiras, assim como a maioria das mulheres, entregavam-se ao ofício de preparar os sabores mais apreciados desses sertões.

Carne cozida com jerimum e maxixe, pirão coberto com peixe no coco, carne assada com farinha e leite, galinha capoeira no sangue acompanhada com pirão e feijão de corda, tutano machucado com feijão e farinha, beiju, pamonha, tapioca no leite de coco, costela de criação e porco assada, avoante torrada na banha de porco, doces de rapadura, caju, mamão e quarenta, suco de manga, ata, qualhada com bolacha seca, laranja com pato cozido, capote no quiabo com farofa de cebola, tatu refogado com cebola, pimenta e macaxeira, panelada, fuçura, pirão de rabada e mão de vaca, buchada, cachaça, caldo-de-cana, sucos, castanha de caju assada, quebra-queixo, tapioca, beiju, churisco, bolo de milho, bolo de batata doce, farofa de tripa de porco assada, peixe torrado com farofa de cebola e tomate, cuscuz com carne seca, churisco, caça etc. todas as comidas enfeitando com seus sabores e aromas as conversas que permeiam aquela gente.

Até que a próxima estiagem reforce a necessidade de comer carnaúba preta. Café de manjirioba adoçado com rapadura sustenta o estômago enquanto não chega a hora do sono. Os sinos da matriz badalam indolentes e põe em marcha todas as almas que esperam hóstia para salivarem seus impulsos de fé. Os olhos sempre arribados para o céu, esperam o nublado que trás novamente a alegria de ver o Jaguaribe esporrando toda a sua riqueza e esplendor, da aurora ao arrebol. Estômago satisfeito.

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O MERCADOR DE IDÉIAS

 


Fiquei por alguns minutos no alpendre, esperando que a lua, assim como agi sobre as marés, influi-se em mim, bons pensamentos. Ela nasceria por volta das sete horas. Adoro ver seu brilho refletido na copa dos cajueiros, lembro que meus ancestrais, também viram esses reflexos enquanto caçavam. Além do mais, esse ambiente faz com que a minha reflexão se torne mais enraizada.

Encontrar respostas da vida, para saber em qual atalho se deve enveredar. Descobrir qual a causa desse sofrimento que invade como se fosse nato. A natureza me chama para concluir algo que o homem já perdeu há muito tempo, isso é, se é que um dia teve: Paz.

Construir um modelo mais ético em que possamos ingerir muito mais que a moda passageira. Criar outras circunstâncias em que vencer na vida, seja muito mais do que sua conceituação atual, onde para se ter um lugar de repouso — viver em paz — é necessário que muitos vivam famintos. Uma esmola, doação tão egoísta, tanto quanto parece ser o pecado.

 

***

 

Debaixo daquela alpendragem, sem luz criada por gente, olhava o terreiro e os pé de cajarana sombreado pelo luar. Alguém abriu a janela e a luminosidade da casa apagou um pouco a claridade da lua, sentia uma sensação de aparto. Logo, dona Elélia me chamou pro jantar, mas com os pensamentos que havia me invadido, ainda embaraçavam a minha vista míope. Pensava o quão é inútil se produzir algum trabalho consistente na nossa sociedade.

    Obrigado querida! Mas, não tô com fome, obrigado.

Não poderia engolir nada, só água. D. Elélia, a dona da pensão, tinha uma simpatia especial por mim, talvez me tivesse como consolo pela solidão em que vivia, me tratava como filho. Insistiu para que eu me comesse, mas a minha vontade era de caminhar pelas ruas. Foi o que fiz.

Era uma segunda-feira enfadonha, todos na cidade se recolheram cedo. As ruas eram todas minhas. No largo da Matriz, cumprimentei o vigia que ressonava no banco. Ao me aproximar da rampa da igreja, uma voz me fez parar.

    Quer saber a verdade?

Olhei para trás e um bêbado, com uma blusa antiga de muitas campanhas políticas passadas, encardida e rasgada, olhava para mim com olhos dilatados. Sim, eu queria saber a verdade. Ele me respondeu que havia urinado nas calças e se riu com a gracinha feita. Sorri de maneira errada. O bêbado se ajoelhou nos batentes laterais da igreja e começou a chorar, pedia perdão por alguma coisa que não pude entender. Ele falava como se tivesse uma batata na língua. Continuei caminhando em direção ao Passo municipal, preferindo não perder meu tempo com um bêbado delirante.

Era outubro e as noites estavam ventiladas. Parei para observar uma coruja branca que alçou voou de uma das torres da igreja. Planava com tanta facilidade. Vez em quando, batia duas ou três vezes as asas, já era o suficiente para ganhar altura novamente. Passou por cima das acácias causando alvoroço nas andorinhas.

Parou numa das árvores e se enfiou por entre os galhos, muitos pássaros voaram, mas em pouco tempo a predadora infalível saiu com sua presa nas garras. Saiu tão tranquila quanto entrou. Voando como se fosse em câmera lenta, como se fosse rotina voltou para a torre.

Voltei a caminhar e no primeiro passo, dei de frente com o mesmo bêbado. Não me lembrava de tê-lo visto outras vezes por essas bandas. Queria que eu lhe desse algumas moedas, mas eu não contribuiria para aquela morte.

    Então volte para a sua rede! Vá para os seus sonhos e acorde amanhã cedo para dar continuidade à sua vida fajuta. Você pensa que pode entender o mundo? Você não entende nada! A morte é como aquela coruja, chega repentina e não erra o seu objetivo. — Disse o bêbado claramente.

    Você vive embriagado por ter essa certeza? Então porque não pula da ponte e antecipa o fim da sua dor? — Falei furioso, pelos insultos.

    Seria fácil demais. Além disso, como eu poderia, depois de morto, abrir os olhos de tolos como você?

E com um ar nobre, virou-se e partiu como se deixasse para trás uma criatura inútil. Fiquei chocado com a resposta que ele me deu, tão nítida e cheia de razão que não reconheci nele um bêbado, mas uma criatura misteriosa. Gritei por ele, para perguntar outras coisas. Ele parou e ergueu o braço no centro da praça, a coruja branca veio mansamente e pousou. Quando cheguei próximo a ele:

    Você acha que pode abrir meus olhos?

    Talvez! Isso é, se você entender que não entende nada.

    Qual o seu nome?

    Eu sou apenas o bêbado da praça. Quer saber porque você sofre? Eu te digo. Você sofre porque busca entender o que não se pode entender. Esse mundo, sua lógica, suas intenções, são mecanismos de prendê-lo ao que é provisório. Você busca respostas, muitos nem se preocupam com isso.

A maioria apenas espera a morte e a recompensa da felicidade em uma outra vida. Na outra vida não existe felicidade! O que se chama felicidade, é uma exclusividade da raça humana. A felicidade não é matéria, é sentimento. Como eu posso achar felicidade no que é matéria, se não consigo despertar em mim o que realmente tem valor? A matéria é a casca dos olhos, porque vocês preferem satisfazer seus corpos com futilidades, do que pensar em outra forma de prazer. O prazer pleno.

    Mas todos buscam o prazer!

    Sim! Mas, não por entenderem o que é o prazer, pois nunca sentiram o verdadeiro prazer, a verdadeira felicidade. A vida da maioria do povo da sua sociedade é uma alternância entre em contas a pagar e caminhos para fugir da realidade. Sofrimento de milhões, para satisfazer a arrogância e a vaidade de poucos. Esnobes e arrogantes, que não entenderam nada da história da tua raça. Continua igual, sem se dar conta do que realmente tem valor. O globo, suas espécies, as diversas formas de energia vital que nele vivem.

Têm a oportunidade de sentir a mais diversificada quantidade de sensações, e despreza tudo isso para construir um império que o tempo se encarregará de acabar. Construa uma nova Mesopotâmia, ou Roma, uma Nova York, verás que o condicionamento do tempo, levará qualquer coisa que esteja montada sobre o sistema físico ou degenerador do planeta, às ruínas.

     No meu mundo, não! Nesse mundo de pensamentos, o valor está na abundância de boas idéias. Ao contrário de negociar com o que é escasso, negociamos com o que existe de mais farto entre todos os seres que pensam. Negociamos com idéias. E a vantagem está em que, quanto mais pensamentos, sentimentos, mais se fortalece o Império das Idéias. Obviamente, existe a vontade de que haja o maior número de pessoas inteligentes, que saibam os valores da humanidade, dos outros seres e da existência.

O valor do pensamento é o que faz o sistema funcionar.  As artes é um domínio de todos, pois são elas que impulsionam a economia. Portanto, um país como o seu, se interessaria em alfabetizar e extrair todo o potencial intelectual ou cultural da sua população. A riqueza está aí. No entanto, tem que se ter o entendimento, que nenhuma cultura é mais valiosa que outra.

As diversas culturas e seus produtores, se constituem em moeda corrente para as necessidades de cada região do planeta e suas espécies. Todos viveriam bem, pois isso significa a sustentação e o andamento natural do Todo. Sem constrangimentos. O tempo então, ao invés de correr, estica-se, causando a sensação de maior longevidade. Não morrerias com a sensação torpe de que não fez tudo o que gostaria de ter feito. Este é o tempo de se plantar a civilização do homo-libratuns.

O pensamento expresso nas obras artísticas, circularia em todo o planeta. Cada povo torna-se, cada vez mais interligado às diversas realidades, sendo necessário esse entrosamento para a manutenção pacífica dos povos e do fortalecimento da própria identidade global. A paz, a honestidade e o respeito são as garantias do livre pensamento.

Todas as religiões se respeitariam, pois todas expressam as variantes de Deus. Não haveria mais a incoerência da fome, isso será um dos marcadores do novo tempo. Uma humanidade que vive sem fome. Precisa-se agora da maior quantidade de homens pensantes, que produzam idéias e artes, sem a preocupação da falta de comida. Homens e mulheres fortes e saudáveis, tanto fisicamente como intelectualmente. O governo então, é a consciência de cada um.

Enquanto ele falava nítido, sentia meu coração cheio de alegria. Como se tivesse achado o meu lugar. Quando senti uns safanões no ombro e abri os olhos espantado. A voz grossa e bruta aos poucos ia se tornando mais compreensível.

- Acorda vagabundo cachaceiro! Tenha vergonha na cara e vai trabalhar safado. Passa a vida na cachaça e com esse caderno sujo no bolso. Vai fazer alguma coisa de útil. Circula, circula!

Fiz o sinal da cruz e levantei ainda tonto. A pensão, dona Elélia... de onde isso saiu? Ah! Lembro daquelas cenas agora, sonhei com o tempo em que eu era professor.


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🐆 Rio das Onças 🐆
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