A passagem de Zé Martelo



 


A luminosidade fria da lua serpenteava pelas frestas da área de vento da pequena casa em ruínas no sertão do Jaguaribe. Naquele quarto de poucas posses, ele nunca tinha sentido tão clara a percepção dos diversos sons  vindos das incontáveis variedades de espécies que só sai à noite. 

Naquele quarto os segundos pareciam horas. O tempo escorria lentamente pelas sombras das horas que não faziam sombras. A sensação da morte vinha dos vários e múltiplos pontos de dor e choques aleatórios espalhados pelo corpo. Os olhos procuravam desesperados algum ponto de luz que desse um sossego.

Cavernoso, em sua cuneiforme rede, o corpo se negava a  fazer qualquer movimento. Reafirmando a condição de humano expressou um assombroso bocejar entre sono e gemidos de dor.

As memórias acendem nele uma noite de cão. Naquele calabouço de angustias e máguas, os pensamentos eram tão espontâneos como a sua pulsação, hora vexada, hora demasiada lenta. As memórias dilaceravam o seu interior tão intensamente quanto as dores e o mal-estar.

Quando melhorava dos movimentos fazia tilintar as moedas guardadas na algibeira. Também conformava-se com a pouca comida sempre à mesa. Sua vida era pouco mais que uma espera ansiosa pelo fim. Mas não existe ninguém sobre a face da terra que não se assombre com o pavor da ânsia da morte.

Havia em seus pensamentos uma única e decidida ação, qual fosse, a de permanecer vivo até o momento em que não fosse mais necessário servir ou ter suas necessidades submetidas a vontade de outros homens.

O oxigênio era cada vez mais fino de inalar, além das dores famigeradas do corpo a cada tentativa de respirar. Fazia-se inteiramente impróprio para os esforços, que chavam de "trabáio" sendo apenas a servidão braçal. Lacuna entre o que deveria acontecer para que sua vida já não valesse mais o peso da comida e o espaço de sua presença na terra.

Diante da imensidão do tempo, percebia os sinais da  sua finitude. A respiração tornou-se tão mecânica que ele não tinha mais o poder de cadenciá-la ou controlá-la. O suor frio lambia sua testa e suas axilas, umedecendo os sinais da vida, isso o assombrava mais ainda.

Olhava incessante para a cumeeira e as telhas de barro, esperando que os primeiros raios de sol denunciassem as gretas do telhado. Talvez a visão da luz nascente reanimasse seus órgãos e fortalecesse por mais um dia o conjunto esquelético da sua estrutura.

Mas a pressão da madrugada forçou sua permanência nas dores que explodiam em seu corpo. A frieza que antes sentia na testa, agora se espalhava por todo o corpo. Desde os pés, se espalhando  pelo resto do corpo. Não demorou para começar a sentir que não lhe entrava mais ar.

Era apenas a parca consciência que espreitava o tempo e o espaço do quarto. Reduzindo o pavor de seus olhos dentro de seus próprios pensamentos. Procurava perceber qualquer nova relação com a vida.

 A visão foi se afunilando até um pequeno círculo luminoso no centro da retina. E diante da pupila dilatada, fingiu um repouso passageiro. E passou.

..........................................................................................
🐆 Rio das Onças 🐆

..............................................................................................

Nenhum comentário:

Postar um comentário