O sono zimbro da fome

 


Agora os comboios demoram mais a passar. Não há tantas mercadorias para se transportar, a não ser seres humanos ressecados pela exploração serviçal e pelo desleixo do Estado. Ambrósio era cego de criança, andava pelas estradas e povoados tocando o seu pandeiro, mostrando os seus improvisos certeiros. No ofício de embolador a intimidade com as palavras deve ser tal, que os versos se montam como se já estivessem prontos e naturalizados.

Caminhava com o pandeiro no bornal, uma bengala e um órfão que lhe conduzia auxiliando nas entradas de feiras e nos mercados. O garoto se agarrava e conduzia aquele homem como quem agarra no cabo da enxada ou contorna com uma marreta o ferro amolecido pelo fogo. É trabalho de mundo. Mesmo assim, o sentia como a única família, além de gostar da vida de viajante, livre como os bichos. Como diz o ditado “Cobra que não anda, não come caçote”, então estava sempre correndo atrás de um prato de comida e um local para armar a rede.

Ambrósio pensava sobre esse meio de vida, enquanto o menino procurava uma sombra de árvore onde pudessem escapar das agruras do calor. Na sombra de uma grande oiticica, espalhou sua esteira e recostado naquele oásis, bebeu uma caneca de zinebra e descansou...

O velho ouviu ao longe um piado de rodas de madeira. Voltou-se para o menino e esperou uma fala sobre o que se aproximava, mas o menino nada falou. Então lhe perguntou que carro era aquele que se aproximava. O menino nada via, e resmungou para Ambrósio dizendo que não se via uma alma humana naquele batido de terra, nem construção feita por gente naquele baixio.

Mas na cabeça do cego o som chegava tão claro que era impossível de não acreditar. Desconfiado voltou a perguntar pelo que se aproximava. O menino, aprendido de modos pelo mundo, reverberou para o cego lhe dizendo que com o passar dos anos, o velho além de cego estava ficando doido. Ambrósio não esperou o final da frase e já estava mastigando com a mão sua bengala de cumarú. Deu no rumo da voz do menino e sentiu quando a cipoada estralou no corpo do atrevido e mal educado acompanhante. Complementou com palavras de reprovação e moral, que deixaram o menino soluçando muito mais do que a peia.

Só parou o sermão porque ouviu uma carroça parar bruscamente e uma voz chamar seu nome. Voltou-se para a rodagem apontando o ouvido como se procurasse o lado de onde vinha o som. Perguntou quem era e como sabia seu nome. A mesma voz sisuda voltou aos seus ouvidos, mas desta vez já afirmando a insensatez do destino.

─ Você está velho. Não tem mais idade para ouvir atrevimentos de um moleque. Até quando vai viver nas estradas, esperando pela caridade dos bêbados?

Ao ouvir aquilo ficou extasiado. Não teve mais coragem de fazer nenhuma pergunta, nem mesmo responder a que tinha acabado de ouvir. Então a voz voltou a lhe penetrar os ouvidos.

─ Eu vim para te oferecer o dom da verdade. Depois de apertar minha mão, você terá consciência de tudo que existe e se relaciona. Terá em sua mente todas as visões do mundo e do seu desenvolvimento humano e geológico. Não haverá ser humano capaz de contradizer os seus argumentos, pois a tua voz falará para todos com a mesma clareza da água pura.

O velho coquista emocionado diante da sonoridade das palavras que ouvia, esticou a mão diante da embriaguez da vaidade, não pensou em nenhum instante na profundidade do pacto que já estava próximo de selar. No mesmo instante em que apertou a mão magra, porém vigorosa e firme, seu corpo entrou em estado de choque. Sentiu cada molécula de seu organismo tremer, enquanto sua cabeça latejava no ritmo dos segundos. Sentou-se escorregando pela bengala até o chão.

­─ Você não precisa de um menino mal criado ― Disse a voz sombria ― Sua companhia deve ser um cachorro pé-duro. Este, até depois da tua morte velará teu túmulo.

Não ouviu mais nenhum som. Nem mesmo o carro indo embora, tudo ficou em silêncio profundo diante da pressão daquele sol de setembro. Começou a pensar sobre as últimas palavras do misterioso viajante, não conseguiu se lembrar de tudo e como estava no chão, imaginou ter desmaiado e tudo aquilo não passava de um delírio. Chamou o menino pelo apelido e a resposta que teve foi um latido.

Gritou várias vezes e a voz familiar do menino não lhe chegava. Nesse acesso se arrastou pela rodagem, caiu numa rampa da beira da estrada e resmungou o sumiço do guia. Durante todo esse tempo o cachorro lhe seguiu e sempre latia como se afirmasse a sua presença.

Imaginou que o estranho poderia ter levado o menino consigo. Mas depois, lembrou-se que a partir do momento da chegada da carroça, não havia mais ouvido o acompanhante. Será que fugiu sozinho, depois das lapadas de bengala? O velho começou a sentir o sol esfriar, era o fim da tarde. Onde começa a algazarra de sons e ventos acalentadores. Então, sem o menino, tateou no grande pé de oiticica algum lugar onde pudesse armar a rede. Vez ou outra sentia o enconstado do cachorro em sua perna, e ele espantava com gritos de aboio.

O tempo já estava bem mais frio, enrolou-se na rede e ficou ouvindo os murmúrios do cachorro embaixo dela. De tanto ouvir aquele som, começou a perceber que havia um sistema fonético complexo, mas começava a compreendê-lo e a decifrá-lo. Sentou-se imediatamente na beira da rede quando ouviu o cachorro se lamentando da sorte, não queria acreditar no que estava acontecendo, certamente estava ficando louco.

─ Desculpe por ter sido bruto com o senhor, mas eu estou cansado dessa vida cheia de chegadas e partidas. ─ Finalizou o som que vinha debaixo da rede.

Ambrósio ficou estarrecido, passou a mão embaixo da rede procurando a cabeça do cachorro para lhe fazer um carinho. O bicho ao sentir o toque esparramou-se no chão como se aquele gesto fosse esperado há muito tempo. O velho começou a ouvir os infinitos sons da mata, e pode compreender todas as espécies de aves, insetos e mamíferos. Não estranhou mais, procurou seu pandeiro que logo passou a ritmar sua embolada. Passou a compor versos de tanta beleza, falando sobre a vontade dos bichos, sobre a natureza e ação holística dos ventos e das águas. Ao finalizar as seis estrofes que cantou, percebeu que os sons da noite tinham silenciados. Logo, com o seu silêncio, os ruídos começaram a pontilhar novamente a escuridão.

Pensou que agora ganharia rios de dinheiro, pela manhã chegaria na cidade cantando suas emboladas e seria conhecido e respeitado em todo o Nordeste. Pelo gozo do pensamento, dormiu tranquilamente. Acordou com seu cachorro esfregando o espinhaço no fundo da rede. A passarada indicava que os primeiros raios de sol estavam se apresentando, logo o dia esquentaria. Juntou seus panos e utensílios e rumou para a feira do Mercado Velho. O cachorro, vez ou outra, batia em sua perna e resmungava algum aviso de batente ou buraco, que ele prontamente obedecia.

Desenrolou a esteira de palha de carnaúba e arrastou seu pandeiro. A voz altiva começou a pronunciar a vida dos moradores do lugar e seus maiores problemas. Revelou intrigas, abusos e todas as questões políticas locais, acusando e dando nome aos autores das histórias. Não prestou nem atenção no som do cobre no coité, apenas ia seguindo a sua inspiração. Sem se equivocar, começou a falar da exploração do povo através dos seus patrões, dos adultérios, dos homicídios, de todas as injustiças sociais que sua consciência achava pertinente versar.

Só parou quando ouviu uma voz de prisão. Mas por quê? Injuriados alguns protestavam contra a glosa daquele velho. Foi então que percebeu que não conseguia mais formular versos para agradar, sua natureza respondia imediatamente aos pedidos da verdade que lhe dava condição de construir versos tão sublimes e puros. Denunciar as atrocidades sociais seria o seu caminho e não podia mudar seu destino.

─ Qual o motivo da minha prisão? ─ Perguntou Ambrósio ao seu algoz.

─ Calúnia e difamação das autoridades da cidade.

Ambrósio gritou para o povo presente, que somente iria preso caso o delegado provasse que ele estava mentindo. Apontou o céu pronunciando verdades que todos sabiam, no entanto achavam melhor esconder. Citou os grandes pensadores da História e os maiores profetas. Lama e mentiras foram descobertas, as palavras eram tão significativas que nem os mais lesados deixavam de compreendê-las. Logo a massa começou a tomar partido e não permitiram que a polícia o levasse para pagar por um crime que não cometeu.

A cuia de coité nunca esteve tão cheia. Dava até para pagar um quarto e fazer uma ceia respeitada. Neste êxtase de vitória lembrou-se do moleque desaparecido. O cachorro latiu ao seu pé, o cego sentiu a felicidade do bicho pelas espanadas de cauda que sua perna conduzia. Mandou pedir pelanca e goela cozida para o seu cachorro, para si, pediu um prato de pão-de-milho com carne seca. Ambrósio prestava atenção nos sons de queixo estralando os pequenos ossos vindos do lado do cachorro, e em sua mente conseguia delinear o perfil de seu novo companheiro de viagem. Resolveu chamá-lo com o apelido do menino desaparecido, só para manter a lembrança.

Armou os punhos de sua rede e põe-se a balançar com o auxílio da parede. Dormiu naquele aconchego raro, caindo profundamente no sono, obedecendo a diminuição do ritmo da rede até parar de balançar. De repente, sentiu uma mão miúda balançando o seu ombro. Chamava por ele incessantemente, e sua voz repetia sempre a mesma frase: “Acorda o carro já vai sair.”. Ao decifrar a frase pulou de sobressalto sobre si, perguntou o que estava acontecendo. O menino então respondeu:

─ Acorda véi, isso é que dá inventar de beber zinebra de bucho vazí! Já é fim de tarde e o caminhão tá esperando pra seguir viagem pro Mercado Velho.

E o cego acordou.


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🐆 Rio das Onças 🐆

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