Foto: Miro Maia - Pôr do sol entre as carnaúbas, Russas - CE. |
As ruas já estavam todas vazias, somente o vigia da noite perambulava com seu apito sonolento. Aquela era uma cidade feliz, seus habitantes dormiam tranquilamente. Sem o medo dos tempos em que vivemos. Por outro lado, a característica de indignar-se e agir contra atitudes que ofendem a lei de Deus e dos homens permanecia letárgica.
João Batista,
conhecido por todos na Vila como Bastião, gostava dessas noites largadas para
se dedicar à contemplação das velhas casas que compõem o centro de São Bernardo
das Russas. Andava em suas ruas, sentia o aroma múltiplo daquele espaço e
depois, deixava-se embalar pelo vento solto e desimpedido do largo da Matriz.
Já testemunhou alguns
movimentos estranhos em suas rondas noturnas, situações e acontecimentos sem
explicações. Uma vez ouviu vozes que negociavam alguma mercadoria no beco do
Mercado Velho, mas ao entrar no bequinho, não avistou um ser vivente. Ficou se
arrepiando toda vez que lembrava, e depois do episódio sobrenatural não cruzava
mais beco à noite.
Certa vez, parou para
descansar na calçada da igreja quando ouviu um assovio fino rasgar o vão da madrugada.
Achou ainda cedo para que fosse algum leiteiro, não deveria passar de duas da
madrugada, quando dobrou a esquina da antiga cadeia avistou um dos capangas do
prefeito Balbino Teixeira. O homem voltou imediatamente quando avistou o jovem
fiscal de quarteirão, alguns minutos depois, reapareceu trazendo consigo um dos
filhos de Balbino.
─ Ouvi dizer que roubaram umas
galinhas da chácara do Dr. Manoel Domingues. É bom que vá pra lá e veja se
descobre quem foi! ─ Disse o rapaz cheio de arrogância.
Bastião ouvindo
aquela ordem, começou a imaginar porque o filho do prefeito haveria de ter interesse
nas galinhas do Dr. Domingues?! Não eram tão amigos para o prefeito mandar uma
ronda pessoal. Pareceu-lhe então que era uma invenção mal bolada para afastá-lo
daquele local.
Não fez questão,
imediatamente montou em sua besta e saiu pela Rua da Frente na direção da
igreja de São Sebastião. Entretanto, ao fazer a volta pela pracinha retornou
pela Rua do Mercado, indo até a casa de Chico Sapateiro, em sua oficina o ponto
de visão era privilegiado de todo o movimento do passo municipal.
Observou que do estreito
beco da Rua do Nascente saiu um carro de boi com coberta de lona. O capanga
estava encostado em uma árvore próxima e o filho do prefeito acompanhava o
carro em seu cavalo.
Encostaram bem em frente a porta que fica do
lado de trás da igreja Matriz, abriram as portas da prefeitura, voltaram até o
fundo da carroça e de lá começaram a puxar uma grande jaula de ferro dobrado. Bastião
estava naquele serviço há seis meses e nunca havia visto este movimento. Os
postes a querosene foram apagados e a única luminosidade que se via era a o
lampião na frente da junta de boi e duas lamparinas de mão.
─ Vez ou outra isso acontece. ─
Disse Chico Sapateiro ─ Tem época de lua crescente em fevereiro, que ele vira
lobisome. Diz que é pro mode a lua nascer no dia que era pra ser 30, como não existe
esse dia em fevereiro ele fica invertido e vira sem ser lua cheia 30.
Bastião não entendeu
a explicação, mas olhava para o rosto daquele velho sapateiro, esperando uma
confirmação do que acabara de ouvir. Nunca soube deste caso, nem por
comentário, que o fazendeiro Balbino Teixeira era um lobisomem.
─ Tem certeza? Você já viu ele
encantado?
─ Uma vez eu vi, quer dizer, ouvi!
Eles são bem cuidadoso, outra vez, chegaro perto das três horas, quase não
fizero zoada. Mas o bicho num tava tranqüilo e urrou que parecia uma mistura de
garrote com onça acuada. Pra desencantar eles faz uma mistura de água benta,
raiz da carnaúba, mel de jandaíra e capim-santo, o bicho amolece e eles
arrastam pra dentro da gaiola. Na hora que vão sair eles apagam os candeeiros
pra mode ninguém aguçar bem a visage.
O jovem Chefe de
Quarteirão escutou um movimento e assim como disse o velho artesão do couro, o
carroceiro aprumou os fundos da carroça para a porta da prefeitura. Depois
apagou as luzes mais próximas, amarrou os bois e ficou segurando nas rédias
para acalmar a junta.
A visão que se tinha
era apenas a do lampião da frente da carroça. Uma luminosidade amarelada que demarcava seu
espaço entre a frente da lona da carroceria e um meio círculo que iluminava os
animais. O resto era breu. A escuridão daquela noite transformava as estrelas nas
coisas mais fáceis de ver em toda imensidão, depois vinha a luz amarelada daquele
carro.
O ranger do ferro na
carroceria de madeira denunciava que a carga já está sendo posta. Nada mais se vê
a não ser, o preocupado carroceiro que insiste em acalmar os animais naquele
momento.
[Chico Sapateiro interrompeu o
instante para informar que, ao contrário do que dizem, não é apenas com a prata
que se mata um lobisomem. Também podemos usar uma socadeira municiada com osso
de defunto pilado, misturado com sal e água-benta].
Esse preparo, dizia
ele, faz um efeito ainda mais danoso ao lobisomem, pois mata lentamente ou
deixa o portador da maldição ferido com a pele marcada, delatando a sua
identidade.
Finalmente o
carro-de-boi inicia a sua marcha e sai. Bastião agradeceu ao amigo como se ele
tivesse lhe dado um presente, já se despedindo com pressa. Correu para ocupar o
seu posto, mas ao chegar se arrastando pelas sombras da Matriz, notou que o carro-de-boi
já havia entrado no beco da velha cadeia, fórum e câmara.
Ficou com medo
naquela noite gelada. Foi até a rua do mercado tomar uma cana na banca de tábua
do seu Pilão, mas não comentou com ninguém sobre o assunto. Não sabia até que
ponto este segredo era conhecido ou não, além do mais, já tinha feito planos
para um novo encontro.
Passou-se um ano da
data do acontecido e Bastião não tinha visto mais nenhum um novo movimento
parecido. Até que no dia primeiro de março, estava se distraindo com uma lasca
de cana-de-açúcar, quando a mesma cena se repetiu. Só que desta vez, o capanga
de Balbino mandou logo vir a carroça e foi em direção a ele, mas ao contrário
da outra vez, não pediu a Bastião que fosse ver algum roubo de galinha.
─ Vem cá rapaz, hoje você vai me
ajudar num serviço. O filho do prefeito não pode vir e eu preciso de mais um ─
Disse o capanga.
Bastião sentiu um
frio laminoso que percorria a sua espinha do osso do mucumbuco ao pé do cangote.
Tentou balbuciar alguma palavra mas não conseguiu. Pensou que os homens estavam
sabendo que ele tinha visto o último episódio, nessa cidade as conversas voam com
o vento.
No entanto, lhe veio
à mente que o único que sabia era Chico Sapateiro, e daquele não tinha medo que
falasse nada. Até porque estava morto. Foi encontrado no dia da festa da
Padroeira, coitado, emborcado por cima de sua banca de trabalho.
O caso é que
acompanhou o capanga e ousou até a fazer um comentário sobre o clima agradável
da noite, como quem quer puxar conversa. O capanga respondeu pelo nariz. Bastião
via com arrepio o mesmo carro que fizera o transporte da primeira vez, mas como
já havia lhe confiado a missão, passou a acreditar que tudo estava sobre
controle e que não precisava se preocupar.
Arquitetou no juízo
como faria para conseguir, quem sabe, receber algum trocado. Não sabia se deixava
que oferecessem ou se inventava algum comentário financeiro. Resolveu dentro de
si esperar que o capanga se manifestasse, caso contrário faria um comentário na
despedida do serviço sobre a dificuldade da vida.
─ Você fica aqui segurando a
junta pra elas num afastar. O carroceiro vai me ajudar a carregar a encomenda.
Imediatamente Bastião
agarrou as rédeas do carro e se posicionou na frente dos bois, assim como fazia
o carroceiro, passava a mão nos pescoços dos animais dizendo palavras de calma.
Pensou que aquele segredo deveria valer muito dinheiro, quanto pagariam pra
guardar a cristandade do senhor Balbino Teixeira?
Esperou alguns
minutos até que ouviu os ruídos de arrastado da jaula em quatro rodinhas de madeira.
Os animais se avexaram na hora em que o peso ganhava conforto na carroceria, ele
puxou as rédeas e manteve o carro sob controle.
─ Rapaz eu quero que você me
ajude a entregar essa carga, o carroceiro não tá se sentindo bem do tiso. Você
vai no carro com o ajudante e depois eu mando lhe deixar. É serviço pro
prefeito. ─ Disse o capanga.
Bastião concordou
imediatamente e saíram os dois debaixo do piado da junta de boi, sentia no ar
que saía de dentro da coberta um cheiro de ferro misturado com imundície. No
caminho passaram a conversar sobre assuntos diversos, até que num determinado
momento, a conversa ficou pesada e irreal.
─ Você rapaz tava espiando o
nosso movimento do ano? ― disse o capataz.
─ Não, eu nunca vi movimento
nenhum. ─ Afirmou Bastião aterrorizado.
─ Eu pensava que fosse só aquele
sapateiro velho que soubesse o segredo, cabra conversador de besteira. Agora
ele não fala mais, veneno é bom e deu cabo desse problema.
─ O senhor tá enganado, eu não
sei de nada de movimento, a minha amizade com o Chico Sapateiro num passava dos
remendos que ele fazia na minha bota. ─ disse amarelado.
─ Você se entregou quando foi
tomar conta dos bois ― falou decidido o capataz ― o ajudante me disse que você
fez os mesmos gestos que o carroceiro faz na hora que acalma a junta de boi.
Coisa que só pode acontecer se você tivesse visto ele fazer. Agora é tarde
vigia da noite.
Bastião virou-se já
com a intenção de pular do carro e ganhar o mato, quando avistou cercando o
caminho um plantel de capangas liderados pelo filho de Balbino Teixeira. Ao
lado avistou o carroceiro com seu lampião estendido acima da cabeça. Foi ele
quem se apressou para fazer a tocaia. Dois cavaleiros desceram e expuseram uma
pá e um ferro-de-cova. Neste mesmo momento ouviu uma garrucha engatilhar no seu
ouvido.
─ Amarrem ele e fechem a boca,
vamos levar pra Lagoa da Onça, lá o barro não vai deixar o corpo dele feder. ─
Disse o filho do prefeito.
O levaram amarrado e
próximo da lagoa começaram o serviço de escavação de sua cova. Bastião assistiu
a tudo soluçando e se engasgando com a saliva. Quando tiraram a mordaça ele
implorou para não morrer, nunca diria nada a ninguém, chamou pela mãe e pediu
ajuda ao pai já morto. Depois de um tempo, já mais controlado, olhou o seu
executor e lhe perguntou se poderia ao menos, antes de morrer, ter a
oportunidade de ver com seus próprios olhos o lobisomem.
─ O lobisomem? ─ Repetiu o filho
do prefeito. ─ Ah! Sim o lobisomem. Tem certeza que quer ver? ─ soltando uma
gargalhada no ar.
─ Sim! ─ Respondeu resoluto da
decisão de sua curiosidade.
Os homens levantaram
o jovem vigia e o conduziram para a traseira do carro-de-boi. Parou em frente a
abertura da lona, quando o capanga afastou com a mão, Bastião ficou apalermado
ao ver, não um lobisomem como havia imaginado e confirmado Chico Sapateiro, mas
sim, um pesado cofre abarrotado de dinheiro da Vila.
Olhou para o capanga procurando uma explicação para aquela situação em que procurou se envolver. O filho do prefeito olhou para ele e disse que já estava pensando em lhe dar somente uma pisa, mas como sua curiosidade não podia ser saciada, acabou descobrindo o segredo, o desfalque do dinheiro público.
Foi naquela mesma noite desterrado. No outro dia
um outro vigia noturno estava fazendo os mesmos trajetos.
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