Fiquei por alguns minutos no alpendre, esperando que
a lua, assim como agi sobre as marés, influi-se em mim, bons pensamentos. Ela
nasceria por volta das sete horas. Adoro ver seu brilho refletido na copa dos
cajueiros, lembro que meus ancestrais, também viram esses reflexos enquanto
caçavam. Além do mais, esse ambiente faz com que a minha reflexão se torne mais
enraizada.
Encontrar respostas da vida, para saber em qual
atalho se deve enveredar. Descobrir qual a causa desse sofrimento que invade
como se fosse nato. A natureza me chama para concluir algo que o homem já
perdeu há muito tempo, isso é, se é que um dia teve: Paz.
Construir um modelo mais ético em que possamos
ingerir muito mais que a moda passageira. Criar outras circunstâncias em que
vencer na vida, seja muito mais do que sua conceituação atual, onde para se ter
um lugar de repouso — viver em paz — é necessário que muitos vivam famintos.
Uma esmola, doação tão egoísta, tanto quanto parece ser o pecado.
***
Debaixo daquela alpendragem, sem luz criada por
gente, olhava o terreiro e os pé de cajarana sombreado pelo luar. Alguém abriu
a janela e a luminosidade da casa apagou um pouco a claridade da lua, sentia
uma sensação de aparto. Logo, dona Elélia me chamou pro jantar, mas com os
pensamentos que havia me invadido, ainda embaraçavam a minha vista míope.
Pensava o quão é inútil se produzir algum trabalho consistente na nossa
sociedade.
— Obrigado
querida! Mas, não tô com fome, obrigado.
Não poderia engolir nada, só água. D. Elélia, a dona
da pensão, tinha uma simpatia especial por mim, talvez me tivesse como consolo
pela solidão em que vivia, me tratava como filho. Insistiu para que eu me comesse,
mas a minha vontade era de caminhar pelas ruas. Foi o que fiz.
Era uma segunda-feira enfadonha, todos na cidade se
recolheram cedo. As ruas eram todas minhas. No largo da Matriz, cumprimentei o
vigia que ressonava no banco. Ao me aproximar da rampa da igreja, uma voz me
fez parar.
— Quer
saber a verdade?
Olhei para trás e um bêbado, com uma blusa antiga de
muitas campanhas políticas passadas, encardida e rasgada, olhava para mim com
olhos dilatados. Sim, eu queria saber a verdade. Ele me respondeu que havia
urinado nas calças e se riu com a gracinha feita. Sorri de maneira errada. O bêbado
se ajoelhou nos batentes laterais da igreja e começou a chorar, pedia perdão
por alguma coisa que não pude entender. Ele falava como se tivesse uma batata
na língua. Continuei caminhando em direção ao Passo municipal, preferindo não
perder meu tempo com um bêbado delirante.
Era outubro e as noites estavam ventiladas. Parei
para observar uma coruja branca que alçou voou de uma das torres da igreja.
Planava com tanta facilidade. Vez em quando, batia duas ou três vezes as asas,
já era o suficiente para ganhar altura novamente. Passou por cima das acácias
causando alvoroço nas andorinhas.
Parou numa das árvores e se enfiou por entre os
galhos, muitos pássaros voaram, mas em pouco tempo a predadora infalível saiu
com sua presa nas garras. Saiu tão tranquila quanto entrou. Voando como se
fosse em câmera lenta, como se fosse rotina voltou para a torre.
Voltei a caminhar e no primeiro passo, dei de frente
com o mesmo bêbado. Não me lembrava de tê-lo visto outras vezes por essas
bandas. Queria que eu lhe desse algumas moedas, mas eu não contribuiria para
aquela morte.
— Então
volte para a sua rede! Vá para os seus sonhos e acorde amanhã cedo para dar
continuidade à sua vida fajuta. Você pensa que pode entender o mundo? Você não
entende nada! A morte é como aquela coruja, chega repentina e não erra o seu
objetivo. — Disse o bêbado claramente.
— Você
vive embriagado por ter essa certeza? Então porque não pula da ponte e antecipa
o fim da sua dor? — Falei furioso, pelos insultos.
— Seria
fácil demais. Além disso, como eu poderia, depois de morto, abrir os olhos de
tolos como você?
E com um ar nobre, virou-se e partiu como se
deixasse para trás uma criatura inútil. Fiquei chocado com a resposta que ele
me deu, tão nítida e cheia de razão que não reconheci nele um bêbado, mas uma
criatura misteriosa. Gritei por ele, para perguntar outras coisas. Ele parou e
ergueu o braço no centro da praça, a coruja branca veio mansamente e pousou.
Quando cheguei próximo a ele:
— Você
acha que pode abrir meus olhos?
— Talvez!
Isso é, se você entender que não entende nada.
— Qual
o seu nome?
— Eu
sou apenas o bêbado da praça. Quer saber porque você sofre? Eu te digo. Você
sofre porque busca entender o que não se pode entender. Esse mundo, sua lógica,
suas intenções, são mecanismos de prendê-lo ao que é provisório. Você busca
respostas, muitos nem se preocupam com isso.
A
maioria apenas espera a morte e a recompensa da felicidade em uma outra vida.
Na outra vida não existe felicidade! O que se chama felicidade, é uma
exclusividade da raça humana. A felicidade não é matéria, é sentimento. Como eu
posso achar felicidade no que é matéria, se não consigo despertar em mim o que
realmente tem valor? A matéria é a casca dos olhos, porque vocês preferem
satisfazer seus corpos com futilidades, do que pensar em outra forma de prazer.
O prazer pleno.
— Mas
todos buscam o prazer!
— Sim!
Mas, não por entenderem o que é o prazer, pois nunca sentiram o verdadeiro
prazer, a verdadeira felicidade. A vida da maioria do povo da sua sociedade é uma
alternância entre em contas a pagar e caminhos para fugir da realidade.
Sofrimento de milhões, para satisfazer a arrogância e a vaidade de poucos.
Esnobes e arrogantes, que não entenderam nada da história da tua raça. Continua
igual, sem se dar conta do que realmente tem valor. O globo, suas espécies, as
diversas formas de energia vital que nele vivem.
Têm a
oportunidade de sentir a mais diversificada quantidade de sensações, e despreza
tudo isso para construir um império que o tempo se encarregará de acabar.
Construa uma nova Mesopotâmia, ou Roma, uma Nova York, verás que o
condicionamento do tempo, levará qualquer coisa que esteja montada sobre o
sistema físico ou degenerador do planeta, às ruínas.
No meu mundo, não! Nesse mundo de pensamentos, o valor está na abundância de boas idéias. Ao contrário de negociar com o que é escasso, negociamos com o que existe de mais farto entre todos os seres que pensam. Negociamos com idéias. E a vantagem está em que, quanto mais pensamentos, sentimentos, mais se fortalece o Império das Idéias. Obviamente, existe a vontade de que haja o maior número de pessoas inteligentes, que saibam os valores da humanidade, dos outros seres e da existência.
O valor do
pensamento é o que faz o sistema funcionar.
As artes é um domínio de todos, pois são elas que impulsionam a
economia. Portanto, um país como o seu, se interessaria em alfabetizar e
extrair todo o potencial intelectual ou cultural da sua população. A riqueza
está aí. No entanto, tem que se ter o entendimento, que nenhuma cultura é mais
valiosa que outra.
As diversas culturas
e seus produtores, se constituem em moeda corrente para as necessidades de cada
região do planeta e suas espécies. Todos viveriam bem, pois isso significa a
sustentação e o andamento natural do Todo. Sem constrangimentos. O tempo então,
ao invés de correr, estica-se, causando a sensação de maior longevidade. Não
morrerias com a sensação torpe de que não fez tudo o que gostaria de ter feito.
Este é o tempo de se plantar a civilização do homo-libratuns.
O pensamento expresso nas obras artísticas,
circularia em todo o planeta. Cada povo torna-se, cada vez mais interligado às
diversas realidades, sendo necessário esse entrosamento para a manutenção
pacífica dos povos e do fortalecimento da própria identidade global. A paz, a
honestidade e o respeito são as garantias do livre pensamento.
Todas as religiões se respeitariam, pois todas
expressam as variantes de Deus. Não haveria mais a incoerência da fome, isso
será um dos marcadores do novo tempo. Uma humanidade que vive sem fome.
Precisa-se agora da maior quantidade de homens pensantes, que produzam idéias e
artes, sem a preocupação da falta de comida. Homens e mulheres fortes e
saudáveis, tanto fisicamente como intelectualmente. O governo então, é a
consciência de cada um.
Enquanto ele falava nítido, sentia meu coração cheio
de alegria. Como se tivesse achado o meu lugar. Quando senti uns safanões no ombro e
abri os olhos espantado. A voz grossa e bruta aos poucos ia se tornando mais compreensível.
- Acorda vagabundo cachaceiro! Tenha vergonha na cara e vai trabalhar safado. Passa a vida na cachaça e com esse caderno sujo no bolso. Vai fazer alguma coisa de útil. Circula, circula!
Fiz o sinal da cruz e levantei ainda tonto. A pensão, dona Elélia... de onde isso saiu? Ah! Lembro daquelas cenas agora, sonhei com o tempo em que eu era professor.
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